quinta-feira, 24 de julho de 2008

Defenestração

Já que a mania de defenestrar crianças está em alta, vamos lá!


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Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo,devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriamcriar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. Amisteriosa Falácia Negra.

-Hermeuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhosherméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.

-Os hermeutas estão chegando!

-Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada...

Os hermeutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividadesprodutivas com seu enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam apopulação prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisasrecuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentidooculto.

-Alô...

-O que é que você quer dizer com isso?

Traquinagem devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.

Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. Aprincípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado,nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Tinha até umcerto tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido dasmulheres:

-Defenestras?

A resposta seria um tapa na cara. mas algumas... Ah, algumasdefenestravam.

Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvezmandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.

Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravamos documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era umapalavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, comoem:

-Aquele é um defenestrado.

Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer?Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata.

Um dia, finalmente procurei no dicionário. E aí está o Aurelião quenão me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration".Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.

Ato de atirar alguém ou algo pela janela!

Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato comoeste só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muitoforte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato deatirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então,defenestração?

Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Umvício como o tabagismo ou as drogas, suprimindo o tempo.

-Les defenestrations. Devem ser proibidas.

-Sim, monsieur le Ministre.

-São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.

-Sim, monsieur le Ministre.

-Com os prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Atédivertido. mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andarpara cima devem ter um cartaz: "Interdit de defenestrer". Os transgressoresserão mutados. Os reincidentes serão presos.

Na bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notóriosdefenestreus. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista nohomem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio dedefenestradores latentes.

-É esta estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela,doutor...

-Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com amãe. Nada com o que se preocupar - diz o analista, afastando-se da janela.

Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algopela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração.Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado esem aberturas, pode ser uma reação inconsciente e esta volúpia humana, nuncatotalmente dominada.

Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial do 17º andar.

-Querida...

-Mmmm?

-Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...

-Fala, amor.

-Sou um defenestrador.

E a noiva, na sua inocência, caminha para a cama:

-Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!

Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entregemidos, ele aponta para cima e balbucia:

-Fui defenestrado...

Alguém comenta:

-Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!

Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel damáquina e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.


Luís Fernando Veríssimo - O Analista de Bagé

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Asteróide B612

Tudo tem um início. E o que não se sabe o início, as pessoas costumam chamar de... melhor nem comentar para não criar confusão. Enfim, o que quero dizer é: montei um blog por uma razão, postar textos que, de uma forma ou de outra me chamaram atenção, e nomeei-o dessa forma por outra razão, que quem for capaz de ler mais do que algumas linhas vai descobrir!

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"
IV

Eu aprendera, pois uma segunda coisa, importantíssima: o seu planeta de origem era um pouco maior do que uma casa!
Não era surpresa pra mim. Sabia que além dos grandes planetas - Terra, Júpter, Marte ou Vênus, aos quais se deram nomes - há centenas e centenas de outros, por vezes tão pequenos que mal se vêem no telescópio. Quando o astrônomo descobre um deles dá-lhe por nome um número. Chama-o, por exemplo: "asteróde 3251".
Tenho sérias razões para supor que o planeta de onde vinha o prínicepe era o asteróide B612. Esse asteróide só foi visto uma vez ao telescópio, em 1909, por um astrônomo turco.
Ele fizera na época uma grande demostração da sua descoberta num Congresso Internacional de Astronomia. Mas ninguém lhe dera crédito por causa das roupas que usava. As pessoas grandes são assim.
Felizmente para a reputação do astróide B612, um ditador turco obrigou o povo, sob pena de morte, a vestir-se à moda européia. O astrônomo repetiu sua demostrção em 1920, numa elegante casaca. Então, dessa vez, todo o mundo se convenceu.
Se lhes dou esses detalhes do asteróide B612 e lhes confio o número, é por causa das pessoas grandes. As pessoas grandes adoram números. Quando a gente lhes fala de um novo amigo, elas jamais se informam do essencial. Não peguntam nunca: "Qual é o som da sua voz? Quais os brinquedos que preferem? Será que ele coleciona borboletas?" Mas perguntam: "Qual é sua idade? Quantos irmãos ele tem? Quanto pesa? Quanto ganha seu pai?" Somente então é que elas julgam conhecê-lo. Se dizemos às pessoas grandes: "Vi uma bela casa de tijolos cor-de-rosa, gerânios na janela, pombas no telhado..." elas não conseguem, de modo nenhum, fazer uma idéia da casa. E preciso dizer-lhes: "Vi uma casa de seiscentos contos". Então elas exclama: "Que beleza!"
Assim, se a gente lhes disser: "A prova de que o pricipezinha existia é que ele era encantador, que ele ria, e que ele queria um carneiro. Quando alguém quer um carneiro, é porque existe" elas darão de ombros e nos chamarão de criança! Mas se dissermos "O planeta de onde ele vinha é o asteróide B612" ficarão interamente convencidas e não amolarão com perguntas. Elas snão assim mesmo. É preciso não lhes quere mal por isso. As criançasde vem ser muito indulgentes com as pessoas grandes.
Mas nós, nós que compreendemos a vida, nós não ligamos aos números! Gostaria de ter começado essa história à moda dos contos de fada. Teria gostado de dizer:
"Era uma vez um pequeno príncipe que habitava um planeta pouco maior que ele, e que tinha necessidade de um amigo..." Para aqueles que compreendem a vida, isto pareceria, sem dúvida, muito mais verdadeiro.
Porque eu não gosto que leiam meu livro levianamente. Dá-me tanta tristeza narrar essas lembranças! Faz já seis anos que meu amigo se foi com seu carneiro. Se tento descrevê-lo aqui, é justamente por que não quero o esquecer. É triste esquecer um amigo. Nem todo mundo tem amigo. E eu corro o reisco de ficar com as pessoas grandes, que só se interessam por números. Foi por causa disso que eu comprei uma caixa de tintas e alguns lápis também. É duro se pôr a desenhar na minha idade, quando nunca se fez outra tentativa além das jibóias fechadas e abertas dos longínquos seis anos! Experimentarei, é claro, fazer os retratos mais parecidos que puder. Mas não tenho muita esperança de conseguir. Um desenho parece passável; outro já interamente diverso. Engano-me tambémno tamnho. Ora o pricepezinha está muito grande, ora pequeno demais. Hesito também quanto a cor de seu traje. Vou arriscando então, aqui e ali. Enganar-me-ei provavelmente em detalhes dos mais importantes. Mas é preciso desculpar. Meu amigo nunca dava explicações. Julgava-me talvez semelhante a ele. Mas, infelizmente, não sei ver carneiro atrás da caixa. Sou um pouco como as pessoas grandes. Acho que envelheci."


O Pequeno Príncipe - Antoine de Saint-Exupéry