terça-feira, 5 de maio de 2009

148 - E, bem, e o resto?

Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me fez esquecer a primeira
amada do meu coração? Talvez porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os
de cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente o resto do livro. O
resto é saber se a Capitu da praia da Glória já estava dentro da de Matacavalos,
ou se esta foi mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus, filho de
Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dir-me-ia, como no seu cap. IX,
vers. 1: “Não tenhas ciúmes de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te
com a malícia que aprender de ti”. Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo;
se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da
outra, como a fruta dentro da casca.

E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o
resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão
extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se
e enganando-me... A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios.

Dom Casmurro - Machado de Assis

terça-feira, 21 de abril de 2009

Carta de Despedida da Olga Benário


Queridos:




Amanhã vou precisar de toda a minha força e de toda a minha vontade. Por isso, não posso pensar nas coisas que me torturam o coração, que são mais caras que a minha própria vida. E por isso me despeço de vocês agora. É totalmente impossível para mim imaginar, filha querida, que não voltarei a ver-te, que nunca mais voltarei a estreitar-te em meus braços ansiosos. Quisera poder pentear-te, fazer-te as tranças - ah, não, elas foram cortadas. Mas te fica melhor o cabelo solto, um pouco desalinhado. Antes de tudo, vou fazer-te forte. Deves andar de sandálias ou descalça, correr ao ar livre comigo. Sua avó, em princípio, não estará muito bem. Deves respeitá-la e querê-la por toda a tua vida, como teu pai e eu fazemos. Todas as manhãs faremos ginástica... Vês? Já volto a sonhar, como tantas noites, e esqueço que esta é a minha carta de despedida. E agora, quando penso nisto de novo, a idéia de que nunca mais poderei estreitar teu corpinho cálido é para mim como a morte.


Carlos, querido, amado meu: terei que renunciar para sempre a tudo de bom que me destes? Conformar-me-ei, mesmo que não pudesse ter-te muito próximo, que teus olhos mais uma vez me olhassem. E queria ver teu sorriso. Quero-os a ambos, tanto, tanto. E estou tão agradecida à vida, por ela haver-me dado ambos. Mas o que eu gostaria era de poder viver um dia feliz, os três juntos, como milhares de vezes imaginei. Será possível que nunca verei o quanto orgulhoso e feliz t sentes por nossa filha?


Querida Anita, meu querido marido, meu Garoto: choro debaixo das mantas para que ninguém me ouça, pois parece que hoje as forças não conseguem alcançar-me para suportar algo tão terrível. É precisamente por isso que esforço-me para despedir-me de vocês agora, para não ter que fazê-lo nas últimas e difíceis horas. Depois desta noite, quero viver para este futuro tão breve que me resta. De ti aprendi, querido, o quanto significa a força de vontade, especialmente se emana de fontes como as nossas. Lutei pelo justo, pelo bom e pelo melhor do mundo. Prometo-te agora, ao despedir-me, que até o último instante não terão por que se envergonhar de mim. Quero que me entendam bem: preparar-me para a morte não significa que me renda, mas sim saber fazer-lhe frente quando ela chegue. Mas, no entanto, podem ainda acontecer tantas coisas... Até o último momento manter-me-ei firme e com vontade de viver. Agora vou dormir para ser mais forte. Beijo-os pela última vez.



Olga

domingo, 21 de dezembro de 2008

Tanto de Meu Estado Me Acho Incerto


Tanto do meu estado me acho incerto,

Que em vivo ardor tremendo estou de frio;

Sem causa, juntamente choro e rio,

O mundo todo abarco e nada aperto.


É tudo quanto sinto, um desconcerto;

Da alma o fogo me sai, da vista um rio;

Agora espero, agora desconfio,

Agora desvario, agora acerto.


Estando em terra, chego ao céu voando,

Numa hora acho mil anos, e é de jeito

Que em mil anos não posso achar uma hora.


Se me pergunta alguém porque assi ando

Respondo que não sei; porém suspeito

Que só porque vos vi, minha Senhora.


Luís Vaz de Camões

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Ópera do Malandro

TERESINHA
O amor não tem fronteiras. O amor destrói barreiras.
Só o amor constrói. E nós vamos contruir um bangalô
em Teresópolis! (Sobe as escadas cantarolando)

DURAN
Onde foi que ela ouviu tanta cretinice?

VITÓRIA
Aqui em casa é que não foi.

DURAN
Nunca demos mal exemplo.

VITÓRIA
É. Só pode ser influência dessas malditas novelas da
Rádio Nacional.

DURAN
Eu atiro esse rádio pela janela!

Teresinha desce com a mala

VITÓRIA
Teresinha, duas pessoas podem até se amar que nem
nas novelas. Só que na vida real, se você ama uma pes-
soa, é lógico que não vai casar com ela. Casa com qual-
quer outro. Veja teu pai e eu. Como é que esse casa-
mento durou esse tempo todo? Aqui ninguém ama nem
desama.

DURAN
Nem fede, nem cheira.

VITÓRIA
Nem bate, nem alisa. Então é casamento pra vida in-
teira. É pão pão, queijo queijo. É um tijolo.

DURAN
É sólido como um banco.

VITÓRIA
Porque ninguém suporta os defeitos da pessoa amada
por mais de um fim de semana em Paquetá. Depos a
pessoa amada vai ficando é muito chata. O amor vai
virar exigência e exigência vai virar frustração que vai
virar rancor qie vai virar ódio e o ódio vai ser mortal.
Aí não tem perdão, Teresinha. Só se perdoa a quem
não se ama.

A orquestra ataca em ritmo de valsa
Teresinha canta "Teresinha"
O primeiro me chegou
Como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia
Trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio
Me chamava de rainha
Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Mas não me negava nada
E assustada eu disse não
O segundo me chegou
Como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava de perdida
Me encotrou tão desarmada
Que arranhou meu coração
Mas não me negava nada
E assustada eu disse não
O terceiro me chegou
Como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada
Também nada perguntou
Mal sei como ele se chama
Mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse nãp
Se instalou foito posseiro
Dentro do meu coração
A orquestra silencia
Trecho da Cena 3 - Ópera do Malandro - Chico Buarque

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Memórias de uma Infância Mágica e Inesquecível

Um minutinho de sua atenção, por favor. Costumo publicar aqui textos de famosos. Porém hoje um outro me chamou atenção. Escrito pela aluna da mamãe, que está apenas na sétima série, melhor até que alguns escritores de renome e que de vez enquando dão um pulinho na Ilha de Caras. Vale a pena ler!

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Tranqüilidade, calma, clima ameno. Características da minha cidade, do bairro, da rua. Naquele tempo, as pessoas não tinham pressa nenhuma, com exceção das que perdiam constantemente o bonde. Minha rua era simples e não muito movimentada. Eu era um garoto humilde e isso era o suficiente para me deixar feliz. Lembro-me que na esquina havia uma guarita, onde três policiais se mantinham vigilantes. Eu os observava durante horas e os copiava nos gestos e no jeito. Queria ser um deles. Uma profissão perigosa. Mesmo tendo vigilantes atentos, às vezes apareciam uns gatunos por lá. Além disso, eu adorava a idéia de proteger as pessoas. Ficaria orgulhoso em resguardar a dona Rosinha, o seu Sebastião, o Português da padaria, o senhor Loyola (acho que todos já são falecidos hoje).

Adorava brincar com os amigos. Jogávamos bola, batíamos cartas, brincávamos com bolinhas de gude, de pique, com carrinho de rolimã (feitos por nós mesmos), andávamos de bicicleta, soltávamos pipa, pião... Gostávamos de brincar em um pontilhão, perto de casa. Passar por cima de um córrego, sem nos molhar, era algo sensacional para crianças inocentes. Jogávamos bola em uma ribeira, perto do regato e sempre cortávamos o pé em cacos de vidro abandonados no chão. Deitávamos por ali mesmo e ficávamos vendo os aviões passarem. Adorávamos correr. Às vezes, corríamos com medo da repreensão dos vizinhos, depois de "fazer arte", como dizia a mamãe, ou quando perseguíamos os gatos que lá na rua moravam, com a intenção de assustar os bichanos.Na rua, o chão era de terra e as casas eram antigas já naquela época. Não havia muita iluminação à noite; usávamos lampiões. Eu adorava o domingo. Era dia de ir à capela e de comer paçoca, aquelas vendidas na rua.

A escola era pequena e pouco freqüentada. Os professores eram rígidos (e cruéis). No castigo, os joelhos sofriam no milho, a visão era voltada para a parede ou ficávamos atrás da porta. Não podíamos reclamar de nada. O clima era insípido, mas o ensino era bom.Namoradas? Só depois dos quinze... Essa era uma das regras que eu menos respeitava. Tinha uns casos com umas garotas mais velhas da escola, mas nada passava do portão. Considerávamos namorados ao pegar na mão, beijar no rosto... Tinha sorte por minha escola ter estudantes de sexos diferentes, pois não era muito comum.Amava ouvir os jogos de futebol pelo radinho pequeno e velho do meu pai. Gostava das novelas também, mas meus pais não deixavam. Diziam que era coisa de meninas... Eu corria do cinto, quando eles me pegavam ouvindo uma.

O tempo passou e eu tive várias profissões, mas nenhuma delas foi de vigilante. Tudo mudou. Tudo mudou muito. A evolução daquela época até hoje pode ser observada sob vários pontos de vista. Mas em minha opinião, Antônio Francisco, um velho cansado e vivido, as boas lembranças daqueles tempos são insubstituíveis. E acho que assim vai ser daqui a cinqüenta anos, quando meus netos poderão contar aos seus filhos, assim como eu faço agora, as suas queridas memórias de uma infância mágica e inesquecível.

Mariana Geada Cavalieri

sábado, 6 de dezembro de 2008

Vou-me Embora pra Pasárgada


Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei


Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive


E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada


Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar


E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.


Manuel Bandeira

sábado, 22 de novembro de 2008

As Sem Razões do Amor




Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.


Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.


Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.


Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor




Carlos Drummond de Andrade