domingo, 21 de dezembro de 2008

Tanto de Meu Estado Me Acho Incerto


Tanto do meu estado me acho incerto,

Que em vivo ardor tremendo estou de frio;

Sem causa, juntamente choro e rio,

O mundo todo abarco e nada aperto.


É tudo quanto sinto, um desconcerto;

Da alma o fogo me sai, da vista um rio;

Agora espero, agora desconfio,

Agora desvario, agora acerto.


Estando em terra, chego ao céu voando,

Numa hora acho mil anos, e é de jeito

Que em mil anos não posso achar uma hora.


Se me pergunta alguém porque assi ando

Respondo que não sei; porém suspeito

Que só porque vos vi, minha Senhora.


Luís Vaz de Camões

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Ópera do Malandro

TERESINHA
O amor não tem fronteiras. O amor destrói barreiras.
Só o amor constrói. E nós vamos contruir um bangalô
em Teresópolis! (Sobe as escadas cantarolando)

DURAN
Onde foi que ela ouviu tanta cretinice?

VITÓRIA
Aqui em casa é que não foi.

DURAN
Nunca demos mal exemplo.

VITÓRIA
É. Só pode ser influência dessas malditas novelas da
Rádio Nacional.

DURAN
Eu atiro esse rádio pela janela!

Teresinha desce com a mala

VITÓRIA
Teresinha, duas pessoas podem até se amar que nem
nas novelas. Só que na vida real, se você ama uma pes-
soa, é lógico que não vai casar com ela. Casa com qual-
quer outro. Veja teu pai e eu. Como é que esse casa-
mento durou esse tempo todo? Aqui ninguém ama nem
desama.

DURAN
Nem fede, nem cheira.

VITÓRIA
Nem bate, nem alisa. Então é casamento pra vida in-
teira. É pão pão, queijo queijo. É um tijolo.

DURAN
É sólido como um banco.

VITÓRIA
Porque ninguém suporta os defeitos da pessoa amada
por mais de um fim de semana em Paquetá. Depos a
pessoa amada vai ficando é muito chata. O amor vai
virar exigência e exigência vai virar frustração que vai
virar rancor qie vai virar ódio e o ódio vai ser mortal.
Aí não tem perdão, Teresinha. Só se perdoa a quem
não se ama.

A orquestra ataca em ritmo de valsa
Teresinha canta "Teresinha"
O primeiro me chegou
Como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia
Trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio
Me chamava de rainha
Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Mas não me negava nada
E assustada eu disse não
O segundo me chegou
Como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava de perdida
Me encotrou tão desarmada
Que arranhou meu coração
Mas não me negava nada
E assustada eu disse não
O terceiro me chegou
Como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada
Também nada perguntou
Mal sei como ele se chama
Mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse nãp
Se instalou foito posseiro
Dentro do meu coração
A orquestra silencia
Trecho da Cena 3 - Ópera do Malandro - Chico Buarque

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Memórias de uma Infância Mágica e Inesquecível

Um minutinho de sua atenção, por favor. Costumo publicar aqui textos de famosos. Porém hoje um outro me chamou atenção. Escrito pela aluna da mamãe, que está apenas na sétima série, melhor até que alguns escritores de renome e que de vez enquando dão um pulinho na Ilha de Caras. Vale a pena ler!

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Tranqüilidade, calma, clima ameno. Características da minha cidade, do bairro, da rua. Naquele tempo, as pessoas não tinham pressa nenhuma, com exceção das que perdiam constantemente o bonde. Minha rua era simples e não muito movimentada. Eu era um garoto humilde e isso era o suficiente para me deixar feliz. Lembro-me que na esquina havia uma guarita, onde três policiais se mantinham vigilantes. Eu os observava durante horas e os copiava nos gestos e no jeito. Queria ser um deles. Uma profissão perigosa. Mesmo tendo vigilantes atentos, às vezes apareciam uns gatunos por lá. Além disso, eu adorava a idéia de proteger as pessoas. Ficaria orgulhoso em resguardar a dona Rosinha, o seu Sebastião, o Português da padaria, o senhor Loyola (acho que todos já são falecidos hoje).

Adorava brincar com os amigos. Jogávamos bola, batíamos cartas, brincávamos com bolinhas de gude, de pique, com carrinho de rolimã (feitos por nós mesmos), andávamos de bicicleta, soltávamos pipa, pião... Gostávamos de brincar em um pontilhão, perto de casa. Passar por cima de um córrego, sem nos molhar, era algo sensacional para crianças inocentes. Jogávamos bola em uma ribeira, perto do regato e sempre cortávamos o pé em cacos de vidro abandonados no chão. Deitávamos por ali mesmo e ficávamos vendo os aviões passarem. Adorávamos correr. Às vezes, corríamos com medo da repreensão dos vizinhos, depois de "fazer arte", como dizia a mamãe, ou quando perseguíamos os gatos que lá na rua moravam, com a intenção de assustar os bichanos.Na rua, o chão era de terra e as casas eram antigas já naquela época. Não havia muita iluminação à noite; usávamos lampiões. Eu adorava o domingo. Era dia de ir à capela e de comer paçoca, aquelas vendidas na rua.

A escola era pequena e pouco freqüentada. Os professores eram rígidos (e cruéis). No castigo, os joelhos sofriam no milho, a visão era voltada para a parede ou ficávamos atrás da porta. Não podíamos reclamar de nada. O clima era insípido, mas o ensino era bom.Namoradas? Só depois dos quinze... Essa era uma das regras que eu menos respeitava. Tinha uns casos com umas garotas mais velhas da escola, mas nada passava do portão. Considerávamos namorados ao pegar na mão, beijar no rosto... Tinha sorte por minha escola ter estudantes de sexos diferentes, pois não era muito comum.Amava ouvir os jogos de futebol pelo radinho pequeno e velho do meu pai. Gostava das novelas também, mas meus pais não deixavam. Diziam que era coisa de meninas... Eu corria do cinto, quando eles me pegavam ouvindo uma.

O tempo passou e eu tive várias profissões, mas nenhuma delas foi de vigilante. Tudo mudou. Tudo mudou muito. A evolução daquela época até hoje pode ser observada sob vários pontos de vista. Mas em minha opinião, Antônio Francisco, um velho cansado e vivido, as boas lembranças daqueles tempos são insubstituíveis. E acho que assim vai ser daqui a cinqüenta anos, quando meus netos poderão contar aos seus filhos, assim como eu faço agora, as suas queridas memórias de uma infância mágica e inesquecível.

Mariana Geada Cavalieri

sábado, 6 de dezembro de 2008

Vou-me Embora pra Pasárgada


Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei


Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive


E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada


Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar


E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.


Manuel Bandeira

sábado, 22 de novembro de 2008

As Sem Razões do Amor




Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.


Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.


Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.


Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor




Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Gota D'Água


Já lhe dei meu corpo

Minha alegria

Já estanquei meu sangue

Quando fervia

Olha a voz que me resta

Olha a veia que salta

Olha a gota que falta

Pro desfecho da festa

Por favor...


Deixe em paz meu coração

Que ele é um pote até aqui de mágoa

E qualquer desatenção, faça não

Pode ser a gota d'água...(2x)


Já lhe dei meu corpo

Minha alegria

Já estanquei meu sangue

Quando fervia

Olha a voz que me resta

Olha a veia que salta

Olha a gota que falta

Pro desfecho da festa

Por favor...

Deixe em paz meu coração

Que ele é um pote até aqui de mágoa

E qualquer desatenção, faça não

Pode ser a gota d'água

Pode ser a gota d'água

Pode ser a gota d'água....


Chico Buarque

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

De Frente Pro Crime

Tá lá o corpo estendido no chão
Em vez de rosto a foto de um gol
Em vez de reza uma praga de alguém
E um silêncio servindo de amém

O bar mais perto depressa lotou
Malandro junto com trabalhador
Um homem subiu na mesa do bar
E fez dircurso pra vereador

Veio o camelô vender anel
Cordão, perfume barato
Baiana vai fazer pastel
E um bom churrasco de gato
Quatro horas da manhã baixou
Um santo na porta-bandeira
E a moçada resolveu parar
E então...

Tá lá o corpo estendido no chão
Em vez de rosto a foto de um go
lEm vez de reza uma praga de alguém
E um silêncio servindo de amém
Sem pressa foi cada um pro seu lado
Pensando numa mulher ou num time
Olhei o corpo no chão e fechei
Minha janela de frente pro crime

Veio o camelô vender anel
Cordão, perfume barato
Baiana vai fazer pastel
E um bom churrasco de gato
Quatro horas da manhã baixou
Um santo na porta-bandeira
E a moçada resolveu parar
E então...

João Bosco

domingo, 19 de outubro de 2008

O Último Discurso


Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio... negros... brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, ms dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de faze-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!


Charles Chaplin

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O Processo


- O senhor é acusado de ter agredido uma senhora depois de avançar um sinal.

- Eu?

- Sim, o senhor. Procure lembrar-se.

- Não me lembro.

- Eu lhe dou a dica: que estava fazendo na noite de 29 de abril de 1999?

- Faz tanto tempo. Eu...

- Não se finja de inocente. O senhor atravessava a rua, quando se aproximou de uma senhora, com 40 anos presumíveis, e sem mais nem menos jogou-lhe o carro em cima, propositadamente. O senhor trajava, na ocasião, uma camisa esporte amarela, calça cinza, sapatos pretos, um deles com um furo na sola.

- Quanto detalhe, nunca vi disso.

- Está aqui nos autos.

- E os autos sabem mais do que eu?

- Os autos são a lei.

- Garanto que não fui eu.

- O senhor tem testemunhas para provar contrário?

- Sinceramente, eu não tenho de provar que não fiz nada. Se eu não fiz nada não preciso provar.

- Mas o senhor é acusado.

- Quem acusa prova.

- Quem acusa já morreu.

- Então, fim.

- Fim, uma conversa: o acusante deixou um procurador em seu lugar e pediu que tocasse o processo de qualquer maneira.

- Nesse caso, estou sendo acusado por uma pessoa que nem conheço.

- Não tem importância; o senhor tem uma testemunha a seu favor: Leandro Malheiros Seringal.

- Leandro... Leandro... Ah, sim, me lembro. Foi um colega meu de trabalho que já morreu há uns quatro anos.

- Azar o seu: era a sua testemunha.

- Mas eu nem sabia disso, faz tanto tempo. De qualquer forma, o testemunho do Leandro pode me salvar. Que foi que ele disse?

- Não disse. No dia em que ia dizer, morreu atropelado a caminho deste tribunal.

- Mas se o acusante e a testemunha morreram o processo fica nulo.

- O processo não pode parar, segundo Kafka.

- E o que tem Kafka a ver com isso?

- Muita coisa: Kafka é o Juiz.

- Isso está ficando complicado.
- Complicado é o senhor, como aliás, todo réu primário.

- Uma pergunta: o seu tom de voz, a sua maneira de falar,o seu dedo na minha cara... o senhor tem raiva de mim?

- Tenho raiva de todo criminoso.

- Mas eu não sou criminoso.

- Todo acusado é criminoso - até provar que não é.

- Então o senhor também é um criminoso.

- Posso lhe processar por calúnia.

- Um processo a mais, nessa altura, não tem a menor importância.

- Falar em importância o senhor tem de depositar 2 mil reais pelo uso desta sala de audiências.

- Isso é extorsão.

- Posso lhe processar por difamação, acho mais prudente pagar logo.

- Mas não disponho de 2 mil reais no momento. Me dá um prazo.

- Não estou aqui para dar nada: posso lhe processar por mendicância.

- E eu posso lhe processar por abuso de poder.

- Nesse caso lhe processo por desacato à autoridade.

- Mas o senhor pode fazer tudo e eu não posso fazer nada?

- Eu sou a lei.

- E eu sou o quê?

- Um subordinado da lei, que foi feita para ser cumprida.

- Mas não há julgamento, não há nada?

- Claro que há: o senhor já está sendo julgado.

- Julgado pelo que não fiz?

- Chega de conversa: sua identidade!

- Jovino Assunção.

- Queira perdoar, pensei que estava falando com o Sr. Aderbal das Cruzes.

- Ainda bem que ficou tudo esclarecido. Muito obrigado, posso ir?

- Calma: o senhor tem de preencher esta ficha e deixar o seu endereço.

- Pra quê?

- O senhor poderá ser chamado a qualquer hora.

- De novo? Pra quê?

- Para averiguações posteriores.

- Mas eu já provei que não sou Aderbal, sou Jovino.

- E quem garante que seu nome não é falso?

- Essa, não.

- Essa, sim. E não pode se ausentar da cidade no prazo de um ano sem obter o visto desta repartição. Muito prazer e passar bem.

- Uma perguntinha, por curiosidade: a tal senhora atropelada morreu?

- Absolutamente. Casou-se com um médico americano milionário e hoje vive muito feliz numa fazenda imensa na Califórnia.

- Como é o nome dela?
- Ah, isso é o que ainda não conseguimos apurar para arquivar o processo.

- Mas como sabem que ela casou, foi morar na Califórnia e nem sabem o seu nome?

- Exatamente aí é que surgiu a controvérsia: nestas 518 páginas do processo, 26 testemunhas afirmam que ela se chama Teresa e 26 garantem que é Carmem.

- E porque ela mesma não desempata e diz logo seu nome?

- Muito simples: ela insiste em garantir que nunca foi atropelada. Já estamos pensando em processá-la por esconder evidências.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Ler Devia Ser Proibido


A pensar a fundo na questão, eu diria que ler devia ser proibido. Afinal de contas, ler faz muito mal às pessoas: acorda os homens para realidades impossíveis, tornando-os incapazes de suportar o mundo insosso e ordinário em que vivem. A leitura induz à loucura, desloca o homem do humilde lugar que lhe fora destinado no corpo social. Não me deixam mentir os exemplos de Don Quixote e Madamme Bovary. O primeiro, coitado, de tanto ler aventuras de cavalheiros que jamais existiram, meteu-se pelo mundo afora, a crer-se capaz de reformar o mundo, quilha de ossos que mal sustinha a si e ao pobre Rocinante. Quanto à pobre Emma Bovary, tornou-se esposa inútil para fofocas e bordados, perdendo-se em delírios sobre bailes e amores cortesãos.
Ler realmente não faz bem. A criança que lê pode se tornar um adulto perigoso, inconformado com os problemas do mundo, induzido a crer que tudo pode ser de outra forma. Afinal de contas, a leitura desenvolve um poder incontrolável. Liberta o homem excessivamente. Sem a leitura, ele morreria feliz, ignorante dos grilhões que o encerram. Sem a leitura, ainda, estaria mais afeito à realidade quotidiana, se dedicaria ao trabalho com afinco, sem procurar enriquecê-lo com cabriolas da imaginação.


Sem ler, o homem jamais saberia a extensão do prazer. Não experimentaria nunca o sumo Bem de Aristóteles: o conhecer. Mas pra que conhecer se, na maior parte dos casos, o que necessita é apenas executar ordens? Se o que deve, enfim, é fazer o que dele esperam e nada mais?
Ler pode provocar o inesperado. Pode fazer com que o homem crie atalhos para caminhos que devem necessariamente ser longos. Ler pode gerar a invenção. Pode estimular a imaginação de forma a levar o ser humano além do que lhe é devido.
Além disso, os livros estimulam o sonho, a imaginação, a fantasia. Nos transportam a paraísos misteriosos, nos fazem enxergar unicórnios azuis e palácios de cristal. Nos fazem acreditar que a vida é mais do que um punhado de pó em movimento. Que há algo a descobrir. Há horizontes para além das montanhas, há estrelas por trás das nuvens. Estrelas jamais percebidas.
É preciso desconfiar desse pendor para o absurdo que nos impede de aceitar nossas realidades cruas.


Não, não dêem mais livros às escolas. Pais, não leiam para os seus filhos, podem levá-los a desenvolver esse gosto pela aventura e pela descoberta que fez do homem um animal diferente. Antes estivesse ainda a passear de quatro patas, sem noção de progresso e civilização, mas tampouco sem conhecer guerras, destruição, violência. Professores, não contem histórias, podem estimular uma curiosidade indesejável em seres que a vida destinou para a repetição e para o trabalho duro.


Ler pode ser um problema, pode gerar seres humanos conscientes demais dos seus direitos políticos, em um mundo administrado, onde ser livre não passa de uma ficção sem nenhuma verossimilhança. Seria impossível controlar e organizar a sociedade se todos os seres humanos soubessem o que desejam. Se todos se pusessem a articular bem suas demandas, a fincar sua posição no mundo, a fazer dos discursos os instrumentos de conquista da sua liberdade.


O mundo já vai por um bom caminho. Cada vez mais as pessoas lêem por razões utilitárias: para compreender formulários, contratos, bulas de remédio, projetos, manuais, etc. Observem as filas, um dos pequenos cancros da civilização contemporânea. Bastaria um livro para que todos se vissem magicamente transportados para outras dimensões, menos incômodas. É esse o tapete mágico, o pó de pirlimpimpim, a máquina do tempo. Para o homem que lê, não há fronteiras, não há correntes, prisões tampouco. O que pode ser mais subversivo do que a leitura?


É preciso compreender que ler para se enriquecer culturalmente ou para se divertir deve ser um privilégio concedido apenas a alguns. Jamais àqueles que desenvolvem trabalhos práticos ou manuais. Seja em filas, em metrôs, ou no silêncio da alcova... Ler deve ser coisa rara, não pra qualquer um. Afinal de contas, a leitura é um poder e o poder é para poucos. Para obedecer, não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil.


Além disso, a leitura promove a comunicação de dores, alegrias, tantos outros sentimentos. A leitura é obscena. Expõe o íntimo, torna coletivo o individual e público, o secreto, o próprio. A leitura ameaça os indivíduos, porque os faz identificar sua história a outras histórias. Torna-os capazes de compreender e aceitar o mundo do Outro. Sim, a leitura devia ser proibida.
Ler pode tornar o homem perigosamente humano.


Guiomar de Grammont

sábado, 13 de setembro de 2008

Procura da Poesia




Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.


Tua gota de bile, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.


Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.



Carlos Drummond de Andrade

domingo, 7 de setembro de 2008

Mito de Eros e Psique


Psique era a mais nova e bela das três lindas filhas de um rei e uma rainha. Sua beleza ao ser exaltada pelo mundo inteiro, chegando a ser comparada com a Deusa Afrodite. Essa irritou-se com a atenção dispensada a essa mera mortal e chamou seu filho Eros para ajudá-la a resolver o problema. As setas de Eros eram irresistíveis e invencíveis e todos que eram atingidos por elas apaixonavam-se. Afrodite pediu ao filho que fizesse que o homem mais vil e cruel se apaixonasse por Psique.

Eros preparou-se para obedecer às ordens maternas. Havia duas fontes no Jardim da Deusa, uma de água doce, outra de água amarga. Eros encheu dois vasos de âmbar, cada um com água de uma das fontes e dirigiu-se ao quarto de Psique que dormia. Derramou, então, algumas gotas da água da fonte amarga sobre os lábios da jovem, depois, tocou-a de lado com a ponta de sua seta. Psique acordou e abriu os olhos diante de Eros, que perturbado, acabou ferindo-se com sua própria seta. Descuidando-se do seu ferimento, derramou as balsâmicas gotas da alegria sobre os cabelos da moça.

Desde deste dia, nenhum rei, príncipe ou plebeu apresentou-se mais para pedi-la em casamento. Suas duas irmãs mais velhas casaram-se, mas Psique, confinada em seus aposentos, deplorava a solidão, irritada com sua beleza, que agora não mais despertava o amor.
Seus pais, decidiram então, buscar o conselho do oráculo do Deus Apolo em Delfos, que respondeu:

-" A jovem não se destinava a ser esposa de um amante mortal. Seu futuro marido a esperava na montanha e era uma horrível serpente alada".

A jovem aterrorizada foi levada ao pé do monte e abandonada por seu pesarosos parentes e amigos. Conformada com seu destino, Psique foi tomada por um profundo sono, sendo, então, conduzida pela brisa gentil de Zéfiro a um lindo vale.Quando acordou, caminhou por entre as flores, até chegar a um castelo magnífico. Notou que lá deveria ser a morada de um deus, tal a perfeição que podia ver em cada um dos seus detalhes. Tomando coragem, entrou no deslumbrante palácio, onde todos os seus desejos foram satisfeitos por ajudantes invisíveis, dos quais só podia ouvir a voz.

Chegando a escuridão, foi conduzida pelos criados a um quarto de dormir. Certa de ali encontraria finalmente o seu terrível esposo, começou a tremer quando sentiu que alguém entrara no quarto. No entanto, uma voz maravilhosa a acalmou. Logo em seguida, sentiu mãos humanas acariciarem seu corpo. A esse amante misterioso, ela se entregou.. Quando acordou, já havia chegado o dia e seu amante havia desaparecido. Porém essa mesma cena se repetiu por diversas noites.

Enquanto isso, suas irmãs continuavam a sua procura, mas seu esposo misterioso a alertou para não responder aos seus chamados. Psique sentindo-se solitária em seu castelo-prisão, implorava ao seu amante para deixá-la ver suas irmãs. Finalmente, ele aceitou, mas impôs a condição que, não importando o que suas irmãs dissessem, ela nunca tentaria conhecer sua verdadeira identidade.

Quando suas irmãs entraram no castelo e viram aquela abundância de beleza e maravilhas, foram tomadas de inveja. Notando que o esposo de Psique nunca aparecia, perguntaram maliciosamente sobre sua identidade. Embora advertida por seu esposo, Psique viu a dúvida e a curiosidade tomarem conta de seu ser, aguçadas pelos comentários de suas irmãs.
Seu esposo alertou-a que suas irmãs estavam tentando fazer com que ela olhasse seu rosto, mas se assim ela fizesse, ela nunca mais o veria novamente. Além disso, ele contou-lhe que ela estava grávida e se ela conseguisse manter o segredo ele seria divino, porém se ela falhasse, ele seria mortal.

Ao receber novamente suas irmãs, Psique contou-lhes que estava grávida, e que sua criança seria de origem divina. Suas irmãs ficaram ainda mais enciumadas com sua situação, pois além de todas aquelas riquezas, ela era a esposa de um lindo deus. Assim, trataram de convencer a jovem a olhar a identidade do esposo, pois se ele estava escondendo seu rosto era porque havia algo de errado com ele. Ele realmente deveria ser uma horrível serpente e não um deus maravilhoso.

Assustada com o que suas irmãs disseram, escondeu uma faca e uma lâmpada próximo a sua cama, decidida a conhecer a identidade de seu marido, e se ele fosse realmente um monstro terrível, matá-lo. Ela havia esquecido dos avisos de seu amante, de não dar ouvidos a suas irmãs.
A noite, quando Eros descansava ao seu lado, Psique tomou coragem e aproximou a lâmpada do rosto de seu marido, esperando ver uma horrenda criatura. Para sua surpresa, o que viu porém deixou-a maravilhada. Um jovem de extrema beleza estava repousando com tamanha quietude e doçura que ela pensou em tirar a própria vida por haver dele duvidado.
Enfeitiçada por sua beleza, demorou-se admirando o deus alado. Não percebeu que havia inclinado de tal maneira a lâmpada que uma gota de óleo quente caiu sobre o ombro direito de Eros, acordando-o.

Eros olhou-a assustado, e voou pela janela do quarto, dizendo:
- "Tola Psique! É assim que retribuis meu amor? Depois de haver desobedecido as ordens de minha mãe e te tornado minha esposa, tu me julgavas um monstro e estavas disposta a cortar minha cabeça? Vai. Volta para junto de tuas irmãs, cujos conselhos pareces preferir aos meus. Não lhe imponho outro castigo, além de deixar-te para sempre. O amor não pode conviver com a suspeita."

Quando se recompôs, notou que o lindo castelo a sua volta desaparecera, e que se encontrava bem próxima da casa de seus pais. Psique ficou inconsolável. Tentou suicidar-se atirando-se em um rio próximo, mas suas águas a trouxeram gentilmente para sua margem. Foi então alertada por Pan para esquecer o que se passou e procurar novamente ganhar o amor de Eros.
Por sua vez, quando suas irmãs souberam do acontecido, fingiram pesar, mas partiram então para o topo da montanha, pensando em conquistar o amor de Eros. Lá chegando, chamaram o vento Zéfiro, para que as sustentasse no ar e as levasse até Eros. Mas, Zéfiro desta vez não as ergueram no céu, e elas caíram no despenhadeiro, morrendo.

Psique, resolvida a reconquistar a confiança de Eros, saiu a sua procura por todos os lugares da terra, dia e noite, até que chegou a um templo no alto de uma montanha. Com esperança de lá encontrar o amado, entrou no templo e viu uma grande bagunça de grãos de trigo e cevada, ancinhos e foices espalhados por todo o recinto. Convencida que não devia negligenciar o culto a nenhuma divindade, pôs-se a arrumar aquela desordem, colocando cada coisa em seu lugar.

Deméter, para quem aquele templo era destinado, ficou profundamente grata e disse-lhe:

- "Ó Psique, embora não possa livrá-la da ira de Afrodite, posso ensiná-la a fazê-lo com suas próprias forças: vá ao seu templo e renda a ela as homenagens que ela, como deusa, merece".

Afrodite, ao recebê-la em seu templo, não esconde sua raiva. Afinal, por aquela reles mortal seu filho havia desobedecido suas ordens e agora ele se encontrava em um leito, recuperando-se da ferida por ela causada. Como condição para o seu perdão, a deusa impôs uma série de tarefas que deveria realizar, tarefas tão difíceis que poderiam causar sua morte.

Primeiramente, deveria, antes do anoitecer, separar uma grande quantidade de grãos misturados de trigo, aveia, cevada, feijões e lentilhas. Psique ficou assustada diante de tanto trabalho, porém uma formiga que estava próxima, ficou comovida com a tristeza da jovem e convocou seu exército a isolar cada uma das qualidades de grão.

Como 2ª tarefa, Afrodite ordenou que fosse até as margens de um rio onde ovelhas de lã dourada pastavam e trouxesse um pouco da lã de cada carneiro. Psique estava disposta a cruzar o rio quando ouviu um junco dizer que não atravessasse as águas do rio até que os carneiros se pusessem a descansar sob o sol quente, quando ela poderia aproveitar e cortar sua lã. De outro modo, seria atacada e morta pelos carneiros. Assim feito, Psique esperou até o sol ficar bem alto no horizonte, atravessou o rio e levou a Afrodite uma grande quantidade de lã dourada.

Sua 3ª tarefa seria subir ao topo de uma alta montanha e trazer para Afrodite uma jarra cheia com um pouco da água escura que jorrava de seu cume. Dentre os perigos que Psique enfrentou, estava um dragão que guardava a fonte. Ela foi ajudada nessa tarefa por uma grande águia, que voou baixo próximo a fonte e encheu a jarra com a negra água.

Irada com o sucesso da jovem, Afrodite planejou uma última, porém fatal, tarefa. Psique deveria descer ao mundo inferior e pedir a Perséfone, que lhe desse um pouco de sua própria beleza, que deveria guardar em uma caixa. Desesperada, subiu ao topo de uma elevada torre e quis atirar-se, para assim poder alcançar o mundo subterrâneo. A torre, porém, murmurou instruções de como entrar em uma particular caverna para alcançar o reino de Hades. Ensinou-lhe ainda como driblar os diversos perigos da jornada, como passar pelo cão Cérbero e deu-lhe uma moeda para pagar a Caronte pela travessia do rio Estige, advertindo-a
- "Quando Perséfone lhe der a caixa com sua beleza, toma o cuidado, maior que todas as outras coisas, de não olhar dentro da caixa, pois a beleza dos deuses não cabe a olhos mortais”.
Seguindo essas palavras, conseguiu chegar até Perséfone, que estava sentada imponente em seu trono e recebeu dela a caixa com o precioso tesouro. Tomada porém pela curiosidade em seu retorno, abriu a caixa para espiar. Ao invés de beleza havia apenas um sono terrível que dela se apossou.

Eros, curado de sua ferida, voou ao socorro de Psique e conseguiu colocar o sono novamente na caixa, salvando-a.

Lembrou-lhe novamente que sua curiosidade havia novamente sido sua grande falta, mas que agora podia apresentar-se à Afrodite e cumprir a tarefa.

Enquanto isso, Eros foi ao encontro de Zeus e implorou a ele que apaziguasse a ira de Afrodite e ratificasse o seu casamento com Psique. Atendendo seu pedido, o grande deus do Olimpo ordenou que Hermes conduzisse a jovem à assembléia dos deuses e a ela foi oferecida uma taça de ambrosia. Então com toda a cerimônia, Eros casou-se com Psique, e no devido tempo nasceu seu filho, chamado Voluptas (Prazer).

sábado, 6 de setembro de 2008

Internacionalização da Amazônia


Durante debate ocorrido no mês de Novembro/2000, em uma Universidade, nos Estados Unidos, o ex-governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque (PT), foi questionado sobre o que pensava da internacionalização da Amazônia. O jovem introduziu sua pergunta dizendo que esperava a resposta de um humanista e não de um brasileiro. Segundo Cristovam, foi a primeira vez que um debatedor determinou a ótica humanista como o ponto de partida para a sua resposta:

"De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazônia. Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse patrimônio, ele é nosso. Como humanista, sentindo e risco da degradação ambiental que sofre a Amazônia, posso imaginar a sua internacionalização, como também de tudo o mais que tem importância para a Humanidade. Se a Amazônia, sob uma ótica humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro. O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazônia para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extração de petróleo e subir ou não o seu preço. Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado

Se a Amazônia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono, ou de um país. Queimar a Amazônia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação. Antes mesmo da Amazônia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo gênio humano. Não se pode deixar esse patrimônio cultural, como o patrimônio natural amazônico, seja manipulado e destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país.

Não faz muito, um milionário japonês, decidiu enterrar com ele um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado. Durante este encontro, as Nações Unidas estão realizando o Fórum do Milênio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu acho que Nova York, como sede das Nações Unidas, deve ser internacionalizada. Pelo menos Manhattan deveria pertencer a toda a Humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza específica, sua história do mundo, deveriam pertencer ao mundo inteiro. Se os EUA querem internacionalizar a Amazônia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil. Nos seus debates, os atuais candidatos à presidência dos EUA têm defendido a idéia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida.

Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do mundo tenha possibilidade de ir à escola. Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como patrimônio que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazônia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um patrimônio da Humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar; que morram quando deveriam viver. Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazônia seja nossa. Só nossa."


Cristovam Buarque

sábado, 30 de agosto de 2008

Um País que Cai de Bunda e Chora



Sou tomado de profunda melancolia ao contemplar o desempenho do Brasil nas Olimpíadas... e constatar nossa colocação no quadro de medalhas... comparar nosso país com os países que estão à nossa frente. Fico triste ao ver que na nossa seleção olímpica de futebol existem jogadores que ganham milhões e milhões de dólares,enquanto representantes do nosso judô choram e são humilhados por não ter dinheiro para pagar o exame de faixa preta. Fico irado ao ver o Galvão Bueno, nas transmissões da Globo, enaltecer delirantemente "o gênio mágico" do "fenômeno" Phelps, nadador norte-americano.... e não falar no mesmo tom do nosso nadador Cielo, este sim, um fenômeno. Fenômeno porque treinou seis horas por dia nos três últimos anos, numa cidade do interior dos EUA, sustentado pelos próprios paise pela generosidade de alguns amigos, pois não recebe um auxílio oficial. Fico depressivo ao contemplar na TV nossas minguadas medalhas de bronze. E fico pensando que, de cada mega-sena e outras loterias oficiais, o governo paga apenas 30 % do arrecado ao ganhador e propaga que os outros 70 % são destinados a isso ou aquilo, sem que a gente possa fiscalizar com nitidez essa aplicação. Estou por completar 66 anos. E desde pequenino tem sido assim. Lembro do Ademar Ferreira da Silva, nosso bicampeão olímpico do salto tríplice que foi competir tuberculoso! E jamais me sairá da mente o olhar de estupor de Diego Hipólito caindo de bunda no chão no final da sua apresentação, quando por infelicidade e questão de dois segundos deixou de subir ao pódio. E de suas lágrimas pedindo desculpas, quando ele não tem culpa de nada. Das lágrimas de outros atletas brasileiras dizendo que não deu. Pedindo desculpas aos familiares e ao povo. Meus Deus ! Será que vou morrer vendo um povo que só chora e pede desculpas? Será que vou morrer num país que se estatela de bunda no chão, enquanto os políticos roubam descadaradamente e as CPIsnão dão em nada? Será que vou morrer num país que se contenta com o assistencialismo e o paternalismo oficiais, um povo que vende seu voto por bolsa-família e por receber um botijão de gás de esmola por mês? Até quando, meu Deus!?

Professor James Pizarro

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Defenestração

Já que a mania de defenestrar crianças está em alta, vamos lá!


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Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo,devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriamcriar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. Amisteriosa Falácia Negra.

-Hermeuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhosherméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.

-Os hermeutas estão chegando!

-Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada...

Os hermeutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividadesprodutivas com seu enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam apopulação prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisasrecuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentidooculto.

-Alô...

-O que é que você quer dizer com isso?

Traquinagem devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.

Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. Aprincípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado,nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Tinha até umcerto tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido dasmulheres:

-Defenestras?

A resposta seria um tapa na cara. mas algumas... Ah, algumasdefenestravam.

Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvezmandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.

Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravamos documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era umapalavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, comoem:

-Aquele é um defenestrado.

Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer?Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata.

Um dia, finalmente procurei no dicionário. E aí está o Aurelião quenão me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration".Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.

Ato de atirar alguém ou algo pela janela!

Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato comoeste só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muitoforte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato deatirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então,defenestração?

Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Umvício como o tabagismo ou as drogas, suprimindo o tempo.

-Les defenestrations. Devem ser proibidas.

-Sim, monsieur le Ministre.

-São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.

-Sim, monsieur le Ministre.

-Com os prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Atédivertido. mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andarpara cima devem ter um cartaz: "Interdit de defenestrer". Os transgressoresserão mutados. Os reincidentes serão presos.

Na bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notóriosdefenestreus. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista nohomem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio dedefenestradores latentes.

-É esta estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela,doutor...

-Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com amãe. Nada com o que se preocupar - diz o analista, afastando-se da janela.

Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algopela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração.Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado esem aberturas, pode ser uma reação inconsciente e esta volúpia humana, nuncatotalmente dominada.

Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial do 17º andar.

-Querida...

-Mmmm?

-Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...

-Fala, amor.

-Sou um defenestrador.

E a noiva, na sua inocência, caminha para a cama:

-Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!

Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entregemidos, ele aponta para cima e balbucia:

-Fui defenestrado...

Alguém comenta:

-Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!

Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel damáquina e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.


Luís Fernando Veríssimo - O Analista de Bagé

quarta-feira, 9 de julho de 2008

Asteróide B612

Tudo tem um início. E o que não se sabe o início, as pessoas costumam chamar de... melhor nem comentar para não criar confusão. Enfim, o que quero dizer é: montei um blog por uma razão, postar textos que, de uma forma ou de outra me chamaram atenção, e nomeei-o dessa forma por outra razão, que quem for capaz de ler mais do que algumas linhas vai descobrir!

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"
IV

Eu aprendera, pois uma segunda coisa, importantíssima: o seu planeta de origem era um pouco maior do que uma casa!
Não era surpresa pra mim. Sabia que além dos grandes planetas - Terra, Júpter, Marte ou Vênus, aos quais se deram nomes - há centenas e centenas de outros, por vezes tão pequenos que mal se vêem no telescópio. Quando o astrônomo descobre um deles dá-lhe por nome um número. Chama-o, por exemplo: "asteróde 3251".
Tenho sérias razões para supor que o planeta de onde vinha o prínicepe era o asteróide B612. Esse asteróide só foi visto uma vez ao telescópio, em 1909, por um astrônomo turco.
Ele fizera na época uma grande demostração da sua descoberta num Congresso Internacional de Astronomia. Mas ninguém lhe dera crédito por causa das roupas que usava. As pessoas grandes são assim.
Felizmente para a reputação do astróide B612, um ditador turco obrigou o povo, sob pena de morte, a vestir-se à moda européia. O astrônomo repetiu sua demostrção em 1920, numa elegante casaca. Então, dessa vez, todo o mundo se convenceu.
Se lhes dou esses detalhes do asteróide B612 e lhes confio o número, é por causa das pessoas grandes. As pessoas grandes adoram números. Quando a gente lhes fala de um novo amigo, elas jamais se informam do essencial. Não peguntam nunca: "Qual é o som da sua voz? Quais os brinquedos que preferem? Será que ele coleciona borboletas?" Mas perguntam: "Qual é sua idade? Quantos irmãos ele tem? Quanto pesa? Quanto ganha seu pai?" Somente então é que elas julgam conhecê-lo. Se dizemos às pessoas grandes: "Vi uma bela casa de tijolos cor-de-rosa, gerânios na janela, pombas no telhado..." elas não conseguem, de modo nenhum, fazer uma idéia da casa. E preciso dizer-lhes: "Vi uma casa de seiscentos contos". Então elas exclama: "Que beleza!"
Assim, se a gente lhes disser: "A prova de que o pricipezinha existia é que ele era encantador, que ele ria, e que ele queria um carneiro. Quando alguém quer um carneiro, é porque existe" elas darão de ombros e nos chamarão de criança! Mas se dissermos "O planeta de onde ele vinha é o asteróide B612" ficarão interamente convencidas e não amolarão com perguntas. Elas snão assim mesmo. É preciso não lhes quere mal por isso. As criançasde vem ser muito indulgentes com as pessoas grandes.
Mas nós, nós que compreendemos a vida, nós não ligamos aos números! Gostaria de ter começado essa história à moda dos contos de fada. Teria gostado de dizer:
"Era uma vez um pequeno príncipe que habitava um planeta pouco maior que ele, e que tinha necessidade de um amigo..." Para aqueles que compreendem a vida, isto pareceria, sem dúvida, muito mais verdadeiro.
Porque eu não gosto que leiam meu livro levianamente. Dá-me tanta tristeza narrar essas lembranças! Faz já seis anos que meu amigo se foi com seu carneiro. Se tento descrevê-lo aqui, é justamente por que não quero o esquecer. É triste esquecer um amigo. Nem todo mundo tem amigo. E eu corro o reisco de ficar com as pessoas grandes, que só se interessam por números. Foi por causa disso que eu comprei uma caixa de tintas e alguns lápis também. É duro se pôr a desenhar na minha idade, quando nunca se fez outra tentativa além das jibóias fechadas e abertas dos longínquos seis anos! Experimentarei, é claro, fazer os retratos mais parecidos que puder. Mas não tenho muita esperança de conseguir. Um desenho parece passável; outro já interamente diverso. Engano-me tambémno tamnho. Ora o pricepezinha está muito grande, ora pequeno demais. Hesito também quanto a cor de seu traje. Vou arriscando então, aqui e ali. Enganar-me-ei provavelmente em detalhes dos mais importantes. Mas é preciso desculpar. Meu amigo nunca dava explicações. Julgava-me talvez semelhante a ele. Mas, infelizmente, não sei ver carneiro atrás da caixa. Sou um pouco como as pessoas grandes. Acho que envelheci."


O Pequeno Príncipe - Antoine de Saint-Exupéry