sexta-feira, 26 de setembro de 2008

O Processo


- O senhor é acusado de ter agredido uma senhora depois de avançar um sinal.

- Eu?

- Sim, o senhor. Procure lembrar-se.

- Não me lembro.

- Eu lhe dou a dica: que estava fazendo na noite de 29 de abril de 1999?

- Faz tanto tempo. Eu...

- Não se finja de inocente. O senhor atravessava a rua, quando se aproximou de uma senhora, com 40 anos presumíveis, e sem mais nem menos jogou-lhe o carro em cima, propositadamente. O senhor trajava, na ocasião, uma camisa esporte amarela, calça cinza, sapatos pretos, um deles com um furo na sola.

- Quanto detalhe, nunca vi disso.

- Está aqui nos autos.

- E os autos sabem mais do que eu?

- Os autos são a lei.

- Garanto que não fui eu.

- O senhor tem testemunhas para provar contrário?

- Sinceramente, eu não tenho de provar que não fiz nada. Se eu não fiz nada não preciso provar.

- Mas o senhor é acusado.

- Quem acusa prova.

- Quem acusa já morreu.

- Então, fim.

- Fim, uma conversa: o acusante deixou um procurador em seu lugar e pediu que tocasse o processo de qualquer maneira.

- Nesse caso, estou sendo acusado por uma pessoa que nem conheço.

- Não tem importância; o senhor tem uma testemunha a seu favor: Leandro Malheiros Seringal.

- Leandro... Leandro... Ah, sim, me lembro. Foi um colega meu de trabalho que já morreu há uns quatro anos.

- Azar o seu: era a sua testemunha.

- Mas eu nem sabia disso, faz tanto tempo. De qualquer forma, o testemunho do Leandro pode me salvar. Que foi que ele disse?

- Não disse. No dia em que ia dizer, morreu atropelado a caminho deste tribunal.

- Mas se o acusante e a testemunha morreram o processo fica nulo.

- O processo não pode parar, segundo Kafka.

- E o que tem Kafka a ver com isso?

- Muita coisa: Kafka é o Juiz.

- Isso está ficando complicado.
- Complicado é o senhor, como aliás, todo réu primário.

- Uma pergunta: o seu tom de voz, a sua maneira de falar,o seu dedo na minha cara... o senhor tem raiva de mim?

- Tenho raiva de todo criminoso.

- Mas eu não sou criminoso.

- Todo acusado é criminoso - até provar que não é.

- Então o senhor também é um criminoso.

- Posso lhe processar por calúnia.

- Um processo a mais, nessa altura, não tem a menor importância.

- Falar em importância o senhor tem de depositar 2 mil reais pelo uso desta sala de audiências.

- Isso é extorsão.

- Posso lhe processar por difamação, acho mais prudente pagar logo.

- Mas não disponho de 2 mil reais no momento. Me dá um prazo.

- Não estou aqui para dar nada: posso lhe processar por mendicância.

- E eu posso lhe processar por abuso de poder.

- Nesse caso lhe processo por desacato à autoridade.

- Mas o senhor pode fazer tudo e eu não posso fazer nada?

- Eu sou a lei.

- E eu sou o quê?

- Um subordinado da lei, que foi feita para ser cumprida.

- Mas não há julgamento, não há nada?

- Claro que há: o senhor já está sendo julgado.

- Julgado pelo que não fiz?

- Chega de conversa: sua identidade!

- Jovino Assunção.

- Queira perdoar, pensei que estava falando com o Sr. Aderbal das Cruzes.

- Ainda bem que ficou tudo esclarecido. Muito obrigado, posso ir?

- Calma: o senhor tem de preencher esta ficha e deixar o seu endereço.

- Pra quê?

- O senhor poderá ser chamado a qualquer hora.

- De novo? Pra quê?

- Para averiguações posteriores.

- Mas eu já provei que não sou Aderbal, sou Jovino.

- E quem garante que seu nome não é falso?

- Essa, não.

- Essa, sim. E não pode se ausentar da cidade no prazo de um ano sem obter o visto desta repartição. Muito prazer e passar bem.

- Uma perguntinha, por curiosidade: a tal senhora atropelada morreu?

- Absolutamente. Casou-se com um médico americano milionário e hoje vive muito feliz numa fazenda imensa na Califórnia.

- Como é o nome dela?
- Ah, isso é o que ainda não conseguimos apurar para arquivar o processo.

- Mas como sabem que ela casou, foi morar na Califórnia e nem sabem o seu nome?

- Exatamente aí é que surgiu a controvérsia: nestas 518 páginas do processo, 26 testemunhas afirmam que ela se chama Teresa e 26 garantem que é Carmem.

- E porque ela mesma não desempata e diz logo seu nome?

- Muito simples: ela insiste em garantir que nunca foi atropelada. Já estamos pensando em processá-la por esconder evidências.

Um comentário:

Luiza Camporez Pimentel disse...

você esqueceu de colocar "autor desconhecido"! =D

esse texto é muito legal, né? Fiquei anos procurando e quando eu achei e mostrei pra minha professora de portugues, ela ainda me catou ¬¬
mas agora ele estara salvo para sempre no meu e-mail =D

só vim prestigiar..

beijos
Lu