- O senhor é acusado de ter agredido uma senhora depois de avançar um sinal.
- Eu?
- Sim, o senhor. Procure lembrar-se.
- Não me lembro.
- Eu lhe dou a dica: que estava fazendo na noite de 29 de abril de 1999?
- Faz tanto tempo. Eu...
- Não se finja de inocente. O senhor atravessava a rua, quando se aproximou de uma senhora, com 40 anos presumíveis, e sem mais nem menos jogou-lhe o carro em cima, propositadamente. O senhor trajava, na ocasião, uma camisa esporte amarela, calça cinza, sapatos pretos, um deles com um furo na sola.
- Quanto detalhe, nunca vi disso.
- Está aqui nos autos.
- E os autos sabem mais do que eu?
- Os autos são a lei.
- Garanto que não fui eu.
- O senhor tem testemunhas para provar contrário?
- Sinceramente, eu não tenho de provar que não fiz nada. Se eu não fiz nada não preciso provar.
- Mas o senhor é acusado.
- Quem acusa prova.
- Quem acusa já morreu.
- Então, fim.
- Fim, uma conversa: o acusante deixou um procurador em seu lugar e pediu que tocasse o processo de qualquer maneira.
- Nesse caso, estou sendo acusado por uma pessoa que nem conheço.
- Não tem importância; o senhor tem uma testemunha a seu favor: Leandro Malheiros Seringal.
- Leandro... Leandro... Ah, sim, me lembro. Foi um colega meu de trabalho que já morreu há uns quatro anos.
- Azar o seu: era a sua testemunha.
- Mas eu nem sabia disso, faz tanto tempo. De qualquer forma, o testemunho do Leandro pode me salvar. Que foi que ele disse?
- Não disse. No dia em que ia dizer, morreu atropelado a caminho deste tribunal.
- Mas se o acusante e a testemunha morreram o processo fica nulo.
- O processo não pode parar, segundo Kafka.
- E o que tem Kafka a ver com isso?
- Muita coisa: Kafka é o Juiz.
- Isso está ficando complicado.
- Complicado é o senhor, como aliás, todo réu primário.
- Complicado é o senhor, como aliás, todo réu primário.
- Uma pergunta: o seu tom de voz, a sua maneira de falar,o seu dedo na minha cara... o senhor tem raiva de mim?
- Tenho raiva de todo criminoso.
- Mas eu não sou criminoso.
- Todo acusado é criminoso - até provar que não é.
- Então o senhor também é um criminoso.
- Posso lhe processar por calúnia.
- Um processo a mais, nessa altura, não tem a menor importância.
- Falar em importância o senhor tem de depositar 2 mil reais pelo uso desta sala de audiências.
- Isso é extorsão.
- Posso lhe processar por difamação, acho mais prudente pagar logo.
- Mas não disponho de 2 mil reais no momento. Me dá um prazo.
- Não estou aqui para dar nada: posso lhe processar por mendicância.
- E eu posso lhe processar por abuso de poder.
- Nesse caso lhe processo por desacato à autoridade.
- Mas o senhor pode fazer tudo e eu não posso fazer nada?
- Eu sou a lei.
- E eu sou o quê?
- Um subordinado da lei, que foi feita para ser cumprida.
- Mas não há julgamento, não há nada?
- Claro que há: o senhor já está sendo julgado.
- Julgado pelo que não fiz?
- Chega de conversa: sua identidade!
- Jovino Assunção.
- Queira perdoar, pensei que estava falando com o Sr. Aderbal das Cruzes.
- Ainda bem que ficou tudo esclarecido. Muito obrigado, posso ir?
- Calma: o senhor tem de preencher esta ficha e deixar o seu endereço.
- Pra quê?
- O senhor poderá ser chamado a qualquer hora.
- De novo? Pra quê?
- Para averiguações posteriores.
- Mas eu já provei que não sou Aderbal, sou Jovino.
- E quem garante que seu nome não é falso?
- Essa, não.
- Essa, sim. E não pode se ausentar da cidade no prazo de um ano sem obter o visto desta repartição. Muito prazer e passar bem.
- Uma perguntinha, por curiosidade: a tal senhora atropelada morreu?
- Absolutamente. Casou-se com um médico americano milionário e hoje vive muito feliz numa fazenda imensa na Califórnia.
- Como é o nome dela?
- Ah, isso é o que ainda não conseguimos apurar para arquivar o processo.
- Ah, isso é o que ainda não conseguimos apurar para arquivar o processo.
- Mas como sabem que ela casou, foi morar na Califórnia e nem sabem o seu nome?
- Exatamente aí é que surgiu a controvérsia: nestas 518 páginas do processo, 26 testemunhas afirmam que ela se chama Teresa e 26 garantem que é Carmem.
- E porque ela mesma não desempata e diz logo seu nome?
- Muito simples: ela insiste em garantir que nunca foi atropelada. Já estamos pensando em processá-la por esconder evidências.
Um comentário:
você esqueceu de colocar "autor desconhecido"! =D
esse texto é muito legal, né? Fiquei anos procurando e quando eu achei e mostrei pra minha professora de portugues, ela ainda me catou ¬¬
mas agora ele estara salvo para sempre no meu e-mail =D
só vim prestigiar..
beijos
Lu
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